A música como campo de conhecimento ao longo dos séculos passou por profundas transformações, de tal modo que afirmar que é a arte e ciência de combinar sons de modo agradável ao ouvido ou a arte de combinar sons e formar com eles melodia e harmonia, são conceitos bastante usuais em livros e dicionários de música, mas também conceitos ultrapassados (BRITO, 2019). Na música do século XX e XXI, sons, silêncio e ruído fazem parte da música. Todo ambiente sonoro que nos envolve é fonte de inspiração para os compositores, de maneira que podemos ouvir música executada por instrumentos musicais, como podemos ouvir música composta a partir de sons do ambiente.
Assim sendo, essas práticas pedagógicas musicais contemporânea pressupõe que o fazer musical deve estar alicerçado em experiências musicais corporais por meio do gesto, movimento, da dança, deve proporcionar meios para desenvolver a criatividade artístico-musical, dar oportunidade do aluno fazer escolhas nos momentos de improvisação e criação musical, enfim dar oportunidade ao aluno para expressar-se por meio da música e ela deve estar presente também no fazer musical e em atividades no Ensino Fundamental.
Diante de todo esse contexto de atuação e perspectivas da Educação Musical, uma das estratégias apropriadas para o fazer pedagógico em sala de aula são os jogos, entendidos segundo o aporte teórico piagetiano.
Piaget, um dos mais importantes nomes da Psicologia da Educação, diz que jogos são atividades lúdicas que a criança desenvolve, como por exemplo, brincar com as mãos, os pés, com objetos, brincar de “casinha”, de pega-pega, com peças e tabuleiros, de faz-de-conta e etc (PIAGET, 2010). Portanto, o jogo na Educação assume assim, o papel de um jogo de exercício por prazer, que leva a aprendizagem e, pode ser usado em todo e qualquer componente curricular previsto pela BNCC.
Jean Piaget e a sua concepção sobre o jogo
Considerado um dos grandes nomes da Psicologia da Educação, Jean Piaget (1896-1980) influenciou profundamente o modo como hoje ensinamos, investigando uma questão inovadora em sua época: “como a criança aprende?” Com essa simples, mas complexa questão, mesmo não tendo como objetivo aplicá-la a Educação, surgiu a chamada de epistemologia genética que revolucionou a compreensão do processo de como aprendemos, e posteriormente a sua aplicação em diferentes áreas, sendo hoje um dos mais importantes teóricos da Educação.
Sua teoria é ampla e complexa, e qualquer que seja o aspecto abordado para estudo é necessário conhecer os conceitos-chaves no qual os estudos de Piaget se alicerçam. Assim, em um “simples” jogo estará presente todo o arcabouço teórico proposto na epistemologia genética: o processo de conhecimento (assimilação e acomodação), o fazer da criança, o desenvolvimento moral manifesto na forma como reage as regras, a interação social e etc.
Para Piaget jogos são atividades lúdicas que a criança desenvolve e define o jogo como o prazer funcional ligado a um exercício (PIAGET, 2010). É importante citar que há diferença entre o conteúdo do jogo e a sua estrutura. Conteúdo são os interesses lúdicos da criança ligado a um objeto como seu corpo, um boneco, animais, construções e etc. A estrutura do jogo é a organização mental que a criança utiliza quando joga. Portanto, sob a perspectiva piagetiana a análise do jogo será conforme essa última perspectiva.
O jogo se manifesta na criança a partir do primeiro estágio, o sensório-motor. Piaget classificou os jogos de acordo com as suas características próprias e podem se manifestar em todos os estágios de desenvolvimento do sujeito. Quando compramos um novo objeto, nossa primeira reação é a exploração e isso irá se manifestar ao longo de nossa vida, mesmo que essa seja uma característica marcante no período sensório-motor.
O jogo, predominantemente assimilação, diferente do processo de imitação, é um exercício de puro prazer com o objetivo de dominar os exercícios, os esquemas envolvidos, as operações mentais necessárias, e assim extrair um sentimento de eficácia e/ou de poder. A criança, quando joga, se entrega ao prazer da atividade e isso gera um sentimento imenso de prazer no fazer, no domínio de um jogo.
O primeiro a se manifestar é o jogo de exercício, que aparece durante os primeiros dezoito meses de vida e tem como objetivo o exercício da função em si, ou seja, a manipulação e exploração de objetos e do próprio ato de brincar (NEGRINE, 1994). A exploração da voz, as primeiras lalações, balançar as mãos e os braços, agitar objetos, ou seja, as primeiras reações circulares da criança. A princípio essas ações são centradas nelas próprias, no próprio exercício, mas à medida que a criança se entrega a esses, os mesmos adquirem um caráter lúdico, de prazer, que se prolonga em jogo (PIAGET, 2010).
No período sensório-motor o jogo de exercício se manifesta acrescentando novas reações como prazer de agir sobre os objetos e o próprio corpo, aplicação de esquemas conhecidos a novas situações, e a ritualização de ações que a prepara a transição ou a transformação para os jogos simbólicos. A partir da ritualização de ações, a criança é capaz de “lembrar-se” do que fez, e isso a torna apta ao exercício do jogo simbólico (PIAGET, 2010).
O jogo simbólico surge durante o segundo ano de vida com o aparecimento da representação e da linguagem. A criança é capaz de se colocar independente das características do objeto, funcionando em esquema de assimilação. Por exemplo, se estiver brincando com um travesseiro com franjas, será capaz de ao tocar em um casaco com franjas, realizar o mesmo tipo de brincadeira, lembrando-se assim, da sua brincadeira anterior. E isso demonstra que há uma similaridade entre os esquemas simbólicos ou primeiros símbolos lúdicos, o evocar de uma lembrança sem necessariamente tê-lo na sua presença, com a imitação diferida e representativa, gênese do jogo simbólico.
Assim, o jogo simbólico representa uma situação sem relação direta com o objeto com que a criança está brincando no momento. O objeto presente serve para evocar o que está ausente. Surge então, a representação, quando uma situação é evocada mentalmente.
Brincar de boneca, de carrinho, de comidinha, são jogos simbólicos, que parte da imitação de situações reais, mas ao mesmo tempo de criação imaginativa. Tal jogo pode ser diferenciado como simbólico individual ou social, a criança pode fazê-lo sozinha ou compartilhar a brincadeira com outras. No entanto, quando os jogos se apresentam de maneira coletiva, compartilhada em uma vida social, tanto no adulto como na criança, há o aparecimento e a existência de regras. Ao invés do símbolo (a boneca, o carrinho), agora aparece as regras (como brincar ou jogar). Tanto o jogo simbólico como o de regras pode acontecer simultaneamente. O jogo de regras é a transição da atividade individual para a socializada, estando implícita uma relação entre indivíduos. A utilização de regras é vista por Piaget como o pressuposto para a interação social, ou seja, para a integração do indivíduo a um grupo social. A regra é compreendida como uma regularidade imposta pelo grupo, e a sua violação constitui uma falta.
Assim, como no jogo simbólico, no jogo de regras há um conjunto de elementos do jogo de exercício presente principalmente no período sensório-motor. Assim, podemos perceber que em um único jogo, podem estar presentes as três fases do jogo: jogo de exercícios, jogo simbólico e jogo de regras.
Se no adulto aparece alguns resquícios dos jogos de exercícios e do jogo simbólico, o jogo de regras, por sua vez está presente e se desenvolve por toda vida: esportes, xadrez, jogos de cartas, etc. E isso acontece por uma razão simples, o jogo de regras é a atividade lúdica própria do ser socializado.
Em resumo, os jogos de regras são jogos em que aparece a combinação sensório-motora (corridas, jogos de bolas e etc) ou intelectuais (cartas, xadrez e etc) com a competição dos indivíduos (sem o que as regras seriam inúteis), regulamentados por códigos transmitidos de geração em geração, ou por acordos momentâneos.
A relação entre a música e o jogo
O pesquisador francês François Delalande desenvolveu análises, relações e proposições relativas ao fazer musical na infância, investigando algumas associações interessantes entre a música e o jogo, sob a perspectiva dos estudos de Piaget. (BRITO, 2019).
Segundo Delalande (2019) toda obra musical contém em si características que se manifestam nas diferentes fases dos jogos, descritos por Piaget. Primeiramente, a atividade musical possui uma relação estreita com o lúdico, e depois, a música como produção simbólica agrega aspectos constitutivos do ser humano, construções simbólicas e mentais tratadas na epistemologia genética.
Para Piaget o jogo sensório-motor tem como característica o exercício em si por prazer. Segundo Delalande (2019) a execução instrumental, a performance, o virtuosismo são atividades musicais características do jogo sensório-motor. A maneira de tocar um instrumento e o controle da sonoridade criam uma fusão entre a sensação e a motricidade. Para fazer música, o músico parte de uma atividade motora, da exploração, do controle motor dos dedos, dos lábios, da coluna de ar, ou qualquer que seja o ato motor que irá produzir som. Nessa exploração, no “achar o seu som”, a sensação torna-se presente, caracterizando assim, um puro jogo de exercício e de exploração.
A criança quando conhece um objeto novo, ou um instrumento musical, como por exemplo: o chocalho, o tambor, as clavas, primeiramente ela irá praticar todo e qualquer jogo de exercício, explorando o som, batendo, chacoalhando, raspando e etc. Ela quer conhecer as características desse objeto. E a medida que descobre sons interessante, passa a reproduzí-lo pelo simples prazer do exercício.
O jogo simbólico tem como característica evocar um objeto ou experiência conhecida, imitar o real, como por exemplo brincar de casinha no jogo do “faz de conta”. Nesse sentido, segundo Delalande (2019), a música também imita o real. Provavelmente as primeiras melodias feitas com flauta de ossos tinham como objetivo imitar o canto dos pássaros. As produções musicais, as peças, os concertos, apresentam traços em comum com as experiências vividas. A experiência extramusical está presente em toda música, que vem das impressões e emoções que o compositor constrói do real, do vivenciado, do conhecido.
A criança manifesta características musicais próximas ao jogo simbólico, e isso acontece no momento em que o mero exercício de exploração passa a configurar-se como sons organizados, que representam algo que ela conhece, algo já vivenciado. Um apito pode tornar-se o apito do trem, do juiz de futebol, uma orquestra de sopros. O som do tambor pode ser os passos dos elefantes e os sons de papeis amassados podem representar a chuva, a organização dos sons em uma música com elementos sonoros antes explorados, e assim, a partir de objetos e instrumentos musicais evocar todo e qualquer evento ou acontecimento sonoro.
O jogo de regra tem como característica a inclusão de regras como resultado de uma interação entre os indivíduos. Segundo Delalande (2019) na música, o jogo de regras “é tudo o que pode constituir uma fonte de prazer na própria aplicação do sistema musical. Cada cultura musical tem a sua ‘gramática’ por assim dizer” (p. 516). Na escrita polifônica, por exemplo do compositor J.S. Bach, o jogo manifesta-se a partir de um tema ou pequena fórmula melódica, que é encadeada nas diversas vozes, como um jogo de imitação, que obedece a regras.
Assim, quando as crianças em grupo estabelecemos regras para a criação das próprias músicas ou composições, como por exemplo, sons produzidos em diferentes partes do corpo, oportunizamos o envolvimento deles em um jogo de regras extremamente prazeroso: organizar e criar a música segundo as regras estabelecidas pelo grupo.
Delalande em seu referencial teórico descreveu algumas condutas de produção sonora: exploração, expressão e construção, referentes e manifestas no jogo sensório-motor, no jogo simbólico e no jogo com regras, respectivamente (BRITO, 2003).
Sugestão de Livros
Referências
BRITO, Teca Alencar de; Um Jogo Chamado Música: Escuta, Experiência, Criação e Educação. São Paulo: Ed. Peirópolis, 2019.
DECKERT, Marta. Educação Musical: da teoria à prática na sala de aula. São Paulo: Moderna, 2012.
DECKERT, Marta. Construção do Conhecimento Musical sob a Perspectiva Piagetiana: da Imitação à Representação. 2006. Dissertação (Mestrado em educação). Curso de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2006.
DECKERT, Marta. Desenvolvimento Cognitivo Musical Através de Jogos e Brincadeiras. 2003. Monografia (Especialização) em Educação Musical). Curso de Pós-Graduação em Educação Musical e Regência de Coro Infantil, Escola de Música e Belas Artes do Paraná, Curitiba. 2003.
DELALANDE, François; A Música é um Jogo de Criança. São Paulo: Peirópolis, 2017. Tradução: Alessandra Cintra.
FONTANA, Roseli; CRUZ, Nazaré; Psicologia e trabalho Pedagógico. São Paulo: Atual,1997.
GIL, Antonio C. Métodos e Técnicas de Pesquisa Social. São Paulo: Atlas, 1999.
LINS, Maria Judith Sucupira da Costa; Contribuições da Teoria de Piaget para a Educação. Disponível em: http://periodicos.estacio.br/index.php/reeduc/article/view/4894/2322. Acesso em 09/09/2020
NEGRINE, Airton; Aprendizagem & Desenvolvimento Infantil: Simbolismo e Jogo. Porto Alegre: Editora Prodil, 1994. P. 32-45.
PIAGET, Jean. A construção do real na criança. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar, 1970. (E-book)
PIAGET, Jean. A formação do símbolo na criança. 4a ed. Tradução de Álvaro Cabral e Christiano Monteiro Oiticica. Rio de Janeiro: LTC, 2010,
RAPPAPORT, Clara Regina; FIORI, Wagner da Rocha; DAVIS, Cláudia. Psicologia do Desenvolvimento. São Paulo: EPU, 1991.
RIO DE JANEIRO, PREFEITURA/CONSERVATÓRIO BRASILEIRO DE MÚSICA. Música na Escola: ritmo e movimento. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Educação/Conservatório Brasileiro de Música, 2002.