A neurociência tem como objeto de pesquisa o estudo do sistema nervoso: encéfalo, medula espinhal, nervos periféricos e toda a sua funcionalidade. Popularmente chamamos de “cérebro” todas as partes que estão dentro do nosso crânio, mas o termo correto é encéfalo. No entanto, é importante destacar que no processo de aprendizagem a parte do encéfalo que mais nos interessa é a funcionalidade do cérebro.
Para nos situarmos melhor, vamos conhecer algumas partes do encéfalo, uma das partes mais importantes do sistema nervoso central (SANTOS, 2023):
- Cérebro: é a parte mais desenvolvida do encéfalo humano e representa 78% do peso de sua estrutura e nele são processadas atividades sensoriais, de movimentos, do aprendizado, da percepção, da inteligência e da memória. É subdividido em hemisfério esquerdo e direito (anatomicamente) e é onde se localiza os lobos frontal, parietal, temporal, occipital e a ínsula (funcionalidade).
- Tálamo: sua função principal é receber os estímulos, classificá-los e enviá-los ao local responsável pelo processamento. É o centro principal de entrada das informações sensoriais.
- Hipotálamo: responsável por funções como controle da temperatura do corpo, o relógio biológico, a fome, a sede, o comportamento sexual, além da produção de alguns tipos de hormônios.
- Epitálamo: onde encontra-se a glândula pineal, fonte da melatonina.
- Cerebelo: tem como função coordenar movimentos, garantir a postura corporal e desenvolver habilidades motoras.
- Mesencéfalo: faz parte do tronco encefálico, junto da ponta e do bulbo. Tem como função integrar vários tipos de informações sensoriais, uma delas a audição e os reflexos visuais.
- Ponte: formado por fibras nervosas que conectam várias partes do encéfalo, apresenta como principal função a transferência de informações.
- Medula oblonga ou bulbo: essa estrutura controla uma série de funções automáticas importantes, tais como o batimento cardíaco e a respiração. Além disso, atua em reflexos de deglutição, vômito e tosse.
Na última década, com o desenvolvimento das tecnologias de neuroimagem e consequentemente o estudo do processamento cerebral em tempo real, a neurociência tem se tornado um importante referencial teórico embasando investigações em áreas como a comunicação, o marketing, a psicologia, a educação e também a música.
As pesquisas na música ou na neuromúsica nos mostram que o processamento musical envolve praticamente todas as áreas cerebrais e elas relacionam-se com a percepção de ritmo, altura, timbres, decodificação da métrica musical, melódico-harmônica, a gestualidade e movimento, modulação de prazer e recompensa em resposta à música (MUSZKAT, 2012).
A música é processada no cérebro, mas ela também afeta o seu funcionamento, e isso é de especial interesse para a área da educação musical e da cognição musical, área estas que se relacionam-se diretamente com o ensino e aprendizagem da música.
O Processamento da Música em nosso Cérebro
O som é uma vibração sonora e elas provocam um deslocamento das moléculas do ar. Essas vibrações chegam ao nosso canal auditivo fazendo o tímpano vibrar. O tímpano aciona os ossinhos do ouvido interno que se movem e pressionam a cóclea. Com a força da pressão, a cóclea mexe o líquido dentro dela e ativa as células ciliadas localizadas no seu interior. Ao receber o estímulo sonoro as células ciliadas mandam a informação do som para o cérebro.
Cada frequência de som tem uma relação com uma localização específica nas células ciliadas (dentro da cóclea) que vai dos sons grave para os agudos e isso é chamado de tonotopia coclear. A intensidade do som (forte ou fraco) está diretamente relacionada ao número de fibras que entram em ação. Assim, qualquer estímulo sonoro é levado pelo nervo auditivo até o córtex cerebral de maneira organizada.
No cérebro o som chega primeiro no córtex auditivo ou área auditiva primária localizado no lobo temporal que fica na lateral da cabeça próximo a orelha, onde acontece a decodificação da altura, do timbre, do contorno melódico e do ritmo.
Para que o cérebro possa processar e identificar esses sons, essa área auditiva é conectada com o restante do cérebro em circuitos de ida e volta. Uma das área conectas é a responsável pela memória (hipocampo) que reconhece elementos temáticos e rítmicos. Outra área é de processamento motor e emocional (cerebelo e amígdala) que atribuem um valor emocional a experiência sonora. A área auditiva também se conecta-se com o núcleo acumbens que é relacionado com processamento de sentido de prazer e recompensa. No lobo frontal, localizado na parte da frente da nossa cabeça, são decodificados outros elementos musicais como a estrutura e a ordem temporal ou o comportamento musical planejado (MUSZKAT, 2012).
Segundo MUSZKAT (2012) o processamento da música se dá nos dois hemisférios do cérebro. No lado direito a discriminação da direção das alturas (contorno melódico), do conteúdo emocional da música, e dos timbre. Já no lado esquerdo há o processamento do ritmo, da duração, da métrica, da discriminação da tonalidade. O hemisfério cerebral esquerdo também analisa os parâmetros de ritmo e altura interagindo diretamente com as áreas da linguagem, que identificam a sintaxe musical.
A Música e a Plasticidade Cerebral
A música afeta o funcionamento do cérebro. As pesquisas mostram que a música modifica estruturalmente o cérebro em consequência da prática musical. Assim, o cérebro pode ser modificado em função da prática musical (WAN E SCHLAUG, 2010; MUSZKAT, 2012).
A criança que entra em contato com o ensino da música, isso se aplica também aos adultos, modifica o tamanho e a conexão (maior número de sinapses) entre diversas partes cerebrais como o corpo caloso (que une os dois lados do cérebro), o cerebelo e o córtex motor, envolvido quando se toca um instrumento.
O treinamento musical também proporciona o desenvolvimento de diversas habilidades relacionadas a linguagem, a leitura, ao vocabulário, assim como a habilidades auditivas e motoras (WAN E SCHLAUG, 2010).
O treinamento musical pode afetar positivamente as funções executivas gerais do cérebro que são essenciais para a nossa rotina no dia-a-dia. As funções executivas são processos mentais que nos possibilitam lembrar, associar diferentes informações, rever, planejar, selecionar, a fim de organizar os pensamentos de forma criativa e única. Tarefas como estabelecer objetivos, antecipar tarefas, planejar um texto, planificar tarefas dentro de um tempo e espaço, organizar informações, pensar, memorizar, resumir e etc são tarefas que envolve as funções executivas do cérebro. Essas tarefas executivas apresentam relação com o treinamento musical, pois ambas as atividades utilizam recursos neurais compartilhados envolvidos na representação simbólica.
Os estudos de neuroimagem também mostram que o cérebro dos músicos comparado aos dos não-músicos apresentam um maior corpo caloso, que é conjunto de fibras que funcionam como uma ponte entre os dois hemisférios do cérebro, interligando todas as funções cerebrais. Essas evidencias mostram que o cérebro do músico funciona de modo mais eficiente na integração de informações processadas pelos dois hemisférios cerebrais.
Também há evidencias que o córtex motor primário do músico é maior do que o não músico e isso é influenciado diretamente pelo treinamento musical.
Neurodesenvolvimento e a Educação Musical
Sob o ponto de vista da neurociência, expor a criança ainda nos primeiro anos de vida a estimulação e a aprendizagem musical contribui para a construção de um cérebro biologicamente mais conectado, fluido, emocionalmente competente e criativo. E sob o ponto de vista artístico é um meio de facilitar o florescimento de um talento musical (MUSZKAT, 2012).
O período do nascimento até os dez anos de idade é considerado o momento mais sensível para o desenvolvimento das habilidades musicais na criança. O estímulo musical provoca alterações na anatomia e no funcionamento cerebral, estimula os vínculos sociais, a criatividade, a facilidade em resoluções matemáticas, além do desenvolvimento da linguagem de uma forma muito significativa (ILARI, 2003; MUSZKAT, 2012; GOUVEIA, 2022).
Assim, que tipo de atividade musical o professor ou educador pode proporcionar às crianças para promover o seu desenvolvimento? ILARI (2003) nos diz que é importante que o professor ou educador musical traga para a criança uma diversidade de atividades musicais e com todo tipo de música. Essas atividades são: cantar, fazer ritmos e percussões corporais, movimentar-se ao som da música, dançar, ouvir diversos tipos de ritmos e melodias, manusear objetos sonoros e instrumentos musicais, desenvolver notações musicais espontâneas antes mesmo da aprendizagem da leitura musical, participar de jogos musicais, brincar com rimas e parlendas, encenar musicais, participar de jogos, compor musicais, inventar canções, aprender e criar histórias musicais, construir instrumentos musicais, etc (ILARI, 2003).
Essas atividade estimulam o desenvolvimento e o funcionamento cerebral trazendo alguns benefícios quanto as funções cognitivas para a criança. Vejamos algumas delas (MUSZKAT, 2012):
- Quando há ativação da área do hemisfério esquerdo do cérebro (processamento da música) há também a ativação da função linguística, pois as duas funções música e linguística são sediadas nesse mesmo lado do cérebro.
- Vários circuitos neuronais são ativados por meio da música, pois quando a criança estuda música é colocada em ação várias habilidades que envolvem a percepção de estímulos ao mesmo tempo.
- Nesse processo ocorre também a integração de funções cognitivas como a atenção, a memória, a associação sensorial e corporal envolvidas tanto na linguagem corporal quando simbólica.
- As crianças tendem a expressar as suas emoções mais facilmente por meio da música do que por meio de palavras.
Nesse sentido MUSZKAT (2012) diz que a educação musical pode ser uma ferramenta para o desenvolvimento cognitivo e emocional das crianças, incluindo transtornos e disfunções de neurodesenvolvimento infantil como transtorno de défit de atenção e hiperatividade (TDAH), transtorno do espectro autista (TEA), transtornos de aprendizagem como a dislexia, discalculia, disgrafia, transtorno do processamento auditivo central e etc.
Diante de tantas evidências que a neurociência da música e do desenvolvimento infantil nos trazem, podemos perceber o quanto a Educação Musical ou a musicalização como habilidade a ser trabalhada nas Escolas, promove a estimulação de todo o cérebro, tornando-se importante atividade para o desenvolvimento da criança, não só no aspecto neurológico, mas cognitivo, emocional, social, artístico e musical.
Referências:
GOUVEIA, Clara Cristiana. A influência da música no neurodesenvolvimento infantil: Apontamentos neuropsicológicos e revisão narrativa de estudos das neurociências. Mosaico: Estudos em Psicologia, Belo Horizonte, v. 10, n. 1, p. 67-84, jan-jun, 2022.
ILARI, B. Cognição musical e educação musical: Integrando teoria e prática. In. XII Encontro da ABEM Associação Brasileira de Educação musical. Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2003.
MUSZKAT, Mauro. Música, Neurociência e DesenvolvimentoHumano. In: JORDÃO, Gisele; ALLUCI, Renata R.; MOLINA, Sérgio;TERAHATA, Adriana Miritello. A música na escola. São Paulo:Allucci & Associados Comunicações, 2012. p. 67-69.
MUSZKAT, M. Música e Neurodesenvolvimento: em busca de uma poética musical inclusiva. Literaturas, São Paulo, [s. eu.], v. 1, Ed. 10, pág. 233 – 243, 2019. DOI 10.11606/issn.2316-9826.literartes.2019.163338. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/literarté. Acesso em 30 de setembro de 2023.
RODRIGUES AC, LOUREIRO MA, CARAMELLI P. Musical training, neuroplasticity and cognition. Dement Neuropsychol. 2010 Oct-Dec;4(4):277-286. doi: 10.1590/S1980-57642010DN40400005. PMID: 29213699; PMCID: PMC5619060.
SANTOS, Vanessa Sardinha dos. Encéfalo. Brasil Escola. Disponível em:https://brasilescola.uol.com.br/biologia/estruturas-encefalo-suas-funcoes.htmAcesso em 30 de setembro de 2023.
WAN, C. Y. & SCHLAUG, G. Music making as a tool for promoting brain plasticity across the life span. Neuroscientist, 16, 566-577. Wechsler, D. (1991). Wechsler Intelligence: 2010.